O Escravo – Uma História do Livro O Baú das Histórias Inusitadas

o-ba2-1 O Escravo - Uma História do Livro O Baú das Histórias Inusitadas

 

O ESCRAVO

O ESCRAVO

Primeiro foi o torpor que lhe invadiu, seguido da sensação de que o corpo se partia em mil pedaços. Em seguida, podia jurar pelos seus deuses africanos ou pelos santos dos brancos, que voara e voara, até que despencou ali. E ali, só podia ser um mau sonho. Morto não estava, pois sentiu a dor quando caiu em cima da multidão que amorteceu sua queda. Não sabia sua altura ou seu peso, mas os que tiveram o azar de receber o impacto sofreram na pele. Caiu justamente em cima das longas filas que se formavam na rodoviária de Brasília, à espera de ônibus que não vinham, depois de mais um dia de greve dos rodoviários.

Alguns perceberam o vulto negro despencando, não em uma queda livre, porém, era como se fosse uma asa delta planando e lhe arrastando com a força de alguma grande onda marítima em um contundente strike. Provavelmente, se a queda fosse livre, alguém teria morrido. Entretanto, só se contabilizaram alguns ferimentos e ossos quebrados. Outros se perguntaram se o homem se atirou ou foi empurrado da plataforma superior da rodoviária.

Quando o atordoado homem se levanta, todos notam que está praticamente nu. Suas partes genitais mal estão cobertas por um tecido grosseiro. Entretanto, o mais impressionante são as cicatrizes que carrega pelo corpo musculoso, principalmente nas costas, pois não existe nelas um centímetro de pele que não esteja marcado pelas chagas. No rosto, traz as marcas da varíola. Em uma das orelhas também não se vê o lóbulo. Vários ferimentos abertos e sangrando também são vistos. E, apesar disso, é incontestável a força que emana do homem de quase dois metros, evocando uma figura assustadora.

Os movimentos de cabeça que se alternam de um lado para outro, os braços atordoados, os olhos que reviram em suas órbitas lembram um animal acuado e, talvez, prestes a atacar. A multidão curiosa se aproxima e em sua volta se forma um círculo. Os olhos exprimem medo. Olha para as pessoas e estranha suas vestimentas, nunca vira roupas tão coloridas. Vê homens e mulheres negros e brancos juntos. Não entende. Quando fala, o português que sai de sua boca lembra o dos antigos lusitanos em um estranho sotaque onde a letra S se arrasta:

Quê passa? Quê passa? Donde estou? – pergunta de maneira atabalhoada, enquanto alguém se destaca dos curiosos e caminha em sua direção…

***

Aquele estava sendo um dia difícil para o tenente Rodrigo da polícia militar. Além, das complicações para lidar com os enfurecidos grevistas e com grande parte dos passageiros revoltados, agora aquele estranho incidente. Enquanto comia um pastel de queijo, acompanhado de um copo de caldo de cana, viu surpreso o estranho bailar aéreo do homem negro que no momento a multidão o cercava. Interrompendo o pequeno lanche, primeiro presta ajuda a uma senhora e a uma criança que se feriram, ao serem atingidas pelo homem. Depois, com cautela, se aproxima da estranha figura, e percebe toda sua confusão mental:

Amigo! Calma! Está tudo bem. – diz com os braços levantados. – Você teve uma queda muito feia. Provavelmente, está machucado e pode ter batido a cabeça. Vou chamar o socorro médico para você. Por favor, se acalme.

Enquanto fala desce o braço à procura do telefone celular, num bolso da calça. Porém, o gigante negro percebe que o objeto pendurado na cintura do militar é uma arma, e julgando que ele a pegaria se atira ao seu encontro, agarrando-se a ele num abraço mortal. Rodrigo, mantém a calma, e trançando seus pés nas pernas do oponente lhe aplica um golpe de judô, fazendo-o despencar sobre ele. Entretanto, sua força não é páreo para a do homem que rolando inverte as posições ficando por cima, para em seguida apertar seu pescoço com o antebraço. Todavia, o tenente lhe desfere um violento Shoku tsuki, um contundente golpe de caratê, que lhe acerta o plexo solar, deixando-o sem ar. Levantando-se e procurando respirar, repara na multidão que cresceu muito e claramente o hostiliza. De rompante, sai correndo e chega às escadas rolantes que conduzem ao piso superior da rodoviária, e não entende a feitiçaria que as fazem se movimentar. Corre para o outro lado, atravessando a pista não nota o ônibus que dá ré, e lhe acerta em cheio. Procura se levantar, mas tudo gira, sua visão se escurece e ele desaba no chão.

***

Então doutor Armando, como está o homem? Eu gostaria de vê-lo.

Tenente, tivemos que atá-lo à cama. Assim que acordou não falava coisa com coisa, e mesmo ferido, quis se levantar. Quando não permitimos empurrou a enfermeira que caiu por cima do carrinho de remédios. A coitada acabou cortando a boca. Por sorte, temos sempre soldados por perto e foi necessário três deles para contê-lo. Aplicamos-lhe um sedativo e o prendemos à cama. Se o exame de sangue que realizamos não tivesse dado negativo diria que estava drogado.

O que o senhor acha das marcas das costas e do rosto?

As marcas das costas revelam anos e anos de tortura. Provavelmente, desde pequeno é açoitado. Agora, o que mais me intriga são as marcas de varíola no rosto. O vírus é considerado extinto, e o último caso que se teve notícia foi em 1978, quando uma médica inglesa foi infectada em laboratório, após realizar experiências de cultivo. Esse homem aparenta ter entre trinta e cinco a quarenta anos. Um caso desse não passaria despercebido pelas autoridades e pela comunidade médica.

Bem… Doutor capitão! Preciso falar com ele.

Tenente! Ele não poderá ficar muito tempo aqui. Este é um hospital da Polícia Militar. Só o aceitamos porque o senhor o trouxe, e todos sabemos da consideração que o comandante da PM e o secretário de segurança têm pelo senhor. Principalmente, depois que prendeu os gêmeos serial killers. Para muitos brasilienses o senhor é um herói.

Obrigado! Em qual quarto ele está?

No 239!

O tenente Rodrigo, desde que frequentou a Academia Militar de Brasília, sagrando-se cadete como primeiro colocado, já era considerado um militar de estirpe e um ótimo investigador. Em pouco tempo, constituiu fama de faro fino para desvendar crimes intricados cuja elucidação se mostrava difícil. No começo, sofreu oposição dos investigadores da polícia civil, que o viam como um intruso, mas, por ordem do secretário de segurança que também era coronel da polícia militar e fora seu instrutor, quando um crime demorava a ser solucionado, ele era chamado para cooperar nas investigações. Seu talento, capacidade de raciocínio e o desvendamento de vários delitos, acabaram por convencer e ganhar a confiança dos policiais civis, principalmente, depois do caso dos gêmeos.

Aquele evento do homem que agora se encontra a sua frente, deitado e amarrado a uma cama, o intrigava. A maneira como caiu, o seu linguajar, as marcas nas costas e no rosto. Ali havia algo estranho e ele descobriria. Procurando ganhar a confiança do acidentado, pega um copo com água e oferece para ele, que entendendo permiti que o tenente o sirva:

Meu amigo, eu gostaria que você ficasse calmo e me respondesse algumas perguntas. – diz Rodrigo.

– Se você as responder, garanto que logo estará livre. Fique tranquilo! Isto aqui não é uma prisão! Você está num hospital. Não tenha medo e converse comigo.

Não fujo mais! Não fujo mais! Não entendo! Quê passa?

Calma! Só responda o que vou lhe perguntar. É muito importante.  Ninguém vai machucar você. – continua o tenente em tom brando. – Qual o seu nome?

Jo… João Almeida!

Já começamos bem… João Almeida. Meu nome é Carlos Rodrigo de Almeida. Veja que coincidência: temos o mesmo sobrenome! – reforça, insistindo em primeiro lhe ganhar a simpatia. – De onde você vem?

Estava eu em Quilombo d’Ambrósio.

Quilombo de Ambrósio? Onde fica isso?

Oras! Nas Minas Gerais!

Percebendo que João Almeida está mais calmo, propõe:

Vou soltar suas mãos. Por favor, mantenha a calma e logo estará completamente livre. Enfermeiro! Solte os braços deste homem e lhe traga comida. Depois que o cabo enfermeiro solta parcialmente as amarras e sai para cumprir o resto da ordem, Rodrigo continua:

Eu vi quando caiu. Quero que explique o que aconteceu. Quero saber como ocorreu aquela queda.

Não sei como despenquei. Somente lembro que estava a correr. O quilombo foi atacado por tropas de capitão Oliveira. Dê início, os quilombolas pois-se a resistir, mas os soldados mataram muitos dos fugidos, mataram raparigas e até alguns putos.

O que você está dizendo? Você está dizendo que é fugitivo de um quilombo? Que foi atacado por tropas de soldados? A pancada realmente deve ter afetado seu juízo. Há muito tempo que não existem quilombos. Continue!

Juro que estou a dizer a verdade! Para fugir, peguei carreira no mato, todavia, quando estava a cair numa profundeza e cercado por soldados, fui jogado ao ar. Pensava estar a morrer. Quando me passou o enjoo despenquei sobre aquela gente. Vosmecê creia.

Me fale… João Almeida. Quando isso aconteceu?

Foi logo depois do pasto e o sol estava forte. Todavia, no quilombo não se faz conta d’tempo. Posso dizer-vos que há muito estou por lá. Pouco dantes d’fugir das minas, ouvi o feitor a dizer que o ano do nosso Senhor era 1743. Moço, – continua, enquanto perscruta o lugar – donde estou?

O que você está dizendo não tem como ser verdade. Nós estamos em 2015. – Porém, enquanto fala Rodrigo pensa na estranha queda do homem, das marcas de varíola que carrega, das marcas de chicote em praticamente todo o corpo, daquele linguajar esquisito que lembra os portugueses, mas ao mesmo tempo é diferente. Será possível? Seria até engraçado se fosse verdade; que um escravo de outro século aparecesse na época atual. Não! Não tinha lógica! Haveria de ter uma explicação plausível. – Você disse que é um quilombola. Onde estava antes de ir para o quilombo? Onde vivia antes das minas?

Entretanto, são interrompidos pelo enfermeiro que retorna com a comida e Rodrigo, pedindo ao cabo que permaneça ao lado de João Almeida, avisa que vai ao banheiro e retornará em seguida.

Após urinar, lavar as mãos e o rosto, resolve ir até o refeitório dos médicos e beber um café. Quando está retornando julga ouvir sons abafados vindos do quarto e se põe em alerta. Ao chegar à porta vê dois homens vestidos dos pés ao pescoço de um preto opaco. Percebe que o cabo enfermeiro está caído no chão se debatendo como estivesse tendo uma convulsão. Vê, ainda, que um dos homens sustenta João Almeida que parece estar desmaiado. As figuras também percebem sua presença. Um deles saca uma arma e dispara em sua direção. Por extinto, o tenente Rodrigo recua e puxa a porta, sentindo uma onda atingindo-a e fazendo-a vibrar. Cola seu corpo de encontro à parede, saca sua pistola e espera. O atirador abre a porta e sai com a arma em punho, o militar não vacila e atira em seu braço, que antes de ser forçado a largar a arma pelo impacto da bala, consegue disparar gerando uma onda que se espalha e alcançam algumas cadeiras no corredor, fazendo com que elas caiam. Um soldado que adentrava o corredor também é atingido e vai ao chão tremendo e se debatendo. O outro não está armado e parte em sua direção. Rodrigo lhes aponta a arma. Os homens se entreolham e levam as mãos à altura do peito e, para surpresa do militar, desaparecem na sua frente. A arma dos estranhos está caída no piso, e ele que nunca viu uma igual, não pensa duas vezes e a guarda na cintura, sob a camisa.

Contudo, o que mais lhe chama a atenção não é a altura dos desconhecidos que passavam dos dois metros, e sim, o tamanho de suas cabeças que suplantavam a de qualquer homem que ele conhecia, bem como a ausência de cabelos e sobrancelhas, o que as destacavam ainda mais. No piso do corredor ou do quarto não se vê qualquer gota de sangue. O tenente decide retirar João Almeida daquele lugar e colocá-lo sob sua proteção.

***

A imagem tridimensional projetada diretamente de uma das câmaras de um dos Centros de Desenvolvimento de Embriões (CDE) representava bem o atual estágio do desenvolvimento humano: ao alto, em terceiro plano, o servidor de plasma sintético em formato de cérebro humano, de onde apêndices saíam e interligavam-se ao Útero Criacional transparente de bioplasma com sua base mergulhada em solução homótica. Dentro do UC, em segundo plano, o feto que já passara da condição de embrião.

O PHD Prisma, Estefano Hawking, não parava de admirar a gestação do seu filho que começou há uma semana e dentro de mais três estaria concluída. A Arquiteta-Genética lhe garantiu que todas as características físicas e mentais solicitadas estariam presentes, já que ela obteve amplo sucesso ao manipular os ácidos nucleicos do DNA, na amostra de célula fornecida por ele. Para ele, era importante que além das informações do seu próprio DNA, as novas marcações no DNA do seu filho, permitam que a complexidade de unidades de informação aumentasse consideravelmente lhe tornando um PEG-Humano (humano pós-engenharia genética) de maior capacidade que a dele em todos os aspectos. Esperou bastante tempo até que o Conselho de Gestação dos PEG-h’s lhe autorizasse a embrionar, afinal, quando autorizavam davam prioridade para os casais que se mantinham juntos a mais de quarenta anos. Mas, finalmente conseguiu e estava muito feliz por se tornar pai.

A população de Nova Brasília, até o ano 2376, cresceu muito mais do que se esperava. Em 2377, foi imposto o controle embrionário e de gestação, pois a cidade era um caos de pessoas. Passados cento e quarenta anos o controle continuava e o resultado era perceptível, apesar da perspectiva de vida ter passado para cento e setenta anos graças a engenharia genética, o índice de aumento populacional foi negativo, ficando pela primeira vez em -0,25%, efusivamente comemorado pelo Conselho de Controle Populacional e Conselho de Gestação. Nova Brasília tornara-se a principal cidade mundial, e seus cidadãos relutavam fortemente em ir para as colônias espaciais ou planetárias, e até mesmo para outras cidades ou regiões da terra.

Estefano Hawking, presidente do Conselho dos Controladores do Espaço–Tempo – CCT é um típico PEG-Humano: dois metros e vinte e cinco de altura, sem pelos no corpo ou na cabeça. O crânio, cujo tamanho é de 72 cm, abriga um cérebro com um volume de 2.200ml, que para os padrões do século 21 seria enorme. Na boca de lábios extremamente finos, apenas 28 dentes. O que o difere dos mais jovens e robustos PEG-h’s, é seu corpo extremamente delgado, de somente noventa e oito quilos. Há mais de cinquenta anos foi determinado pelo Conselho de Governantes Terráqueo, que todos os embriões seriam geneticamente preparados para as viagens intergalácticas e tempo-espaciais, portanto, os novos humanos, além da maior capacidade intelectual, eram extremamente fortes e resistentes em comparação aos seus ancestrais de cinquenta ou sessenta anos atrás.

E, é um dos novos PEG-h’s; Jorge Matheus, que lhe aparece em uma projeção de vídeo 3D:

Prisma! Prisma! Precisamos que o senhor venha imediatamente ao centro de vigília. – parece implorar o jovem assistente com as feições estampa- das de preocupação. – Está acontecendo algo grave! Necessitamos da sua ajuda!

Não se preocupe! Vou pela plataforma antigravitacional e em dois minutos estarei aí.

Ao entrar no centro de vigília, Estefano constata que os seus principais colaboradores já estão reuni- dos com a diretora do centro; Marynadja Carvalho, que por si só é uma demonstração que realmente algo muito sério estava acontecendo.

O que houve Mary? – pergunta Estefano enquanto se ajeita na cadeira reservada para ele, e colocada de frente a uma nano-tela de 192 polegadas, que transmite imagens em Real-P.

Nós estávamos numa operação de rotina para corrigir os erros cometidos nos primeiros deslocamentos no tempo, e quando fomos deslocar um escravo do século 18, cuja morte não deveria ter ocorrido, ele foi parar no século 21. Não sabemos se o micro buraco de minhoca que acessamos sofreu uma deformação espaço-temporal diferente da equação calculada, ou se outra anomalia causou o problema. O certo – continua a doutora Mary – é que o homem foi parar em 2015. Dois dos nossos controladores temporal tentaram resgatá-lo e não conseguiram. Mas é melhor que o senhor assista as imagens do acontecimento. – “Lena” – diz se dirigindo ao cérebro de bóson-plasma – disponibilize as imagens CT 1746.2015.

Conforme desejar doutora. – responde “Lena”.

Instantaneamente, as imagens reais do passado aparecem na nano-tela em três dimensões. Inicialmente, se vê o ataque ao quilombo do Ambrósio ocorrido em 1746. Logo depois, o escravo João Almeida que foi parar em Brasília, no ano de 2015, surge tentando se livrar dos seus perseguidores: soldados incumbidos de capturá-lo ou matá-lo. Em seguida seu estranho deslocamento no tempo, e demais acontecimentos, culminando com sua fuga do hospital, capitaneada pelo tenente Rodrigo.

E onde está esse homem agora? Não me diga que vocês o perderam? – preocupa-se o Prisma Estefano.

Como o senhor sabe – intervém Marcos Vinícius, vice-presidente da CCT – os picos-chips de plasma que os controladores de tempo carregam implantados, só nos permitem ver as imagens em Real-P (imagens reais do passado) se elas estiverem num perímetro máximo de quinze quilômetros de algum deles. Já conseguimos imagens desfocadas em até um raio de dezoito a vinte quilômetros Fora isto, não é possível. Portanto, ele deve estar a mais de vinte quilômetros de qualquer controlador.

Os Controladores já haviam realizado a leitura genética de João Almeida? Foram ativados os farejadores genéticos?

Os farejadores varreram um raio de cem quilômetros. Eles já possuíam a leitura enviada pelos Controladores do século 18 e a refizeram, um instante antes do militar do século 21 interrompê-los. Como bem o senhor viu em Real-P, o homem que o levou, é um tenente da polícia militar da Brasília de 2015.

Mary, – prossegue Estefano, enquanto leva a cumprida mão de dedos finos ao queixo. – entre o momento que os homens abandonaram o hospital, e a hora que os farejadores foram ativados, eles conseguiriam se afastar mais de cem quilômetros?

Impossível Prisma Estefano! – afirma Marynadja. – Um dos controladores nos disse que em menos de oito minutos os farejadores foram enviados. O tempo de deslocamento da superfície terrestre para a estação de controle é de três minutos usando o tubo de avulsão.

Qual a anomalia temporal que vocês esperavam corrigir intervendo na história de João Almeida?

Jorge Matheus, assistente da diretora Mary, que até então não se manifestara, propõe-se a explicar:

Com sua licença Prisma Estefano. No continnum espaço-tempo original da vida de João Almeida, ele nunca esteve no Quilombo de Ambrósio, e muito menos perdeu a vida lá. Esse evento foi criado por um ato falho de um dos primeiros viajantes temporais, que querendo estudá-lo, o enclausurou por cinco dias, após abduzi-lo na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, onde deveria ter crescido. Quando o menino de apenas doze anos retornou, o comendador que o escravizava, com raiva, o puniu severamente e o enviou para Minas Gerais. Como esse fato modifica o continnum original, tínhamos que mantê-lo em 1746. Porém, devolvê-lo ao Rio de Janeiro, onde ele retomando sua linha temporal, gera um descendente que se torna fundamental na história do Brasil. Quando investigamos essa corrente de tempo descobrimos os dois continnum, e após vários estudos os apresentamos ao CC (Cérebro Central de bóson-plasma) que referendou nossas conclusões: O evento tinha que ser modificado para corrigir a linha temporal, como já foi realizado em outras ocasiões.

Todos ali sabiam bem que quando os deslocamentos espaço-temporais se iniciaram em meados do século 25, vários erros foram cometidos pelos primeiros deslocadores que vieram causar anomalias temporais. Alguns pecaram pela falta de experiência, outros por estarem mal-intencionados. Em 2491 foi autorizada a criação da CCT, para controle dos deslocamentos no espaço-tempo, bem como corrigir as linhas de tempo alteradas. O mentor foi Estefano Hawking, que logo se tornaria seu primeiro presidente.

As novas tecnologias desenvolvidas que permitiram os deslocamentos espaço-temporais, só foram possíveis graças à rede neural dos cérebros de bóson-plasma da quarta geração, ao contra fluxo magnético e a capacidade de manipulação do próprio plasma que parecia infinita.

Quem são os Controladores que estão no século 21? – indaga Estefano.

Paulo Kauã e Pedro Henrique. – responde Mary. — Paulo está no comando.

Lembrava-se dos dois, haviam sido seus alunos:

Lena! Interseção com Controlador PK2015. – ordena o presidente da CCT.

Em segundos, um jovem PEG-h, na casa de seus quarenta e cinco anos se destaca na nano-tela:

Saudações Prisma Estefano! Saudações a todos do Conselho! Já esperava por esta interseção.

Saudações P.K.! Eu e todos do Conselho vimos o que se passou, e apesar de vocês se espaço-transportarem na frente do militar, entendemos que vocês tomaram a decisão acertada evitando o confronto. Mas o que realmente nos intriga e precisamos de respostas, são sobre as variáveis que levaram um escravo do século 18 a se deslocar três séculos à frente. Desde que passamos a corrigir as linhas temporais, nada parecido havia ocorrido. O arqueador espaço-temporal utilizado por vocês para deslocamento no tempo nunca criou ou acessou um micro buraco que estivesse um milionésimo de desvio das coordenadas previamente calculadas. Além do mais, era apenas um deslocamento geográfico das Minas Gerais para o Rio de Janeiro. É imprescindível que vocês devolvam o cidadão do século 18 à sua época, visto que corremos o risco do surgimento de um terceiro continnum, com consequências incapazes de previsão, inclusive ameaçando nossa existência neste século.

—  Nossa preocupação Prisma Estefano, é tão grande quanto a sua. – responde Paulo Kauã. – Concordamos com o senhor, que uma segunda alteração no espaço-tempo nas mesmas coordenadas pode causar um choque na nossa realidade de consequências imprevisíveis. Vamos localizar João Almeida e devolvê-lo a sua época, para que o continnum original seja mantido.

Se for comprovado que o cidadão do século 18, não estava a mais de cem quilômetros dos farejadores genéticos, temos que descobrir o que está erra- do com eles. – lembra Marcos Vinícius.

Mary! Quero Louis Delord coordenando o trabalho dos Controladores. – determina Hawking, que se voltando para P.K. continua. – Lembre-se Controlador: Nenhuma pessoa do século 21 deve ser ferida por causa de nossa intervenção. Muito menos vir a óbito. Isto seria tão desastroso quanto manter o cidadão João Almeida em 2015. Antes de qualquer nova ação, faça o escaneamento dos picos-chips dos farejadores e deter- mine se há algo errado com eles. Resolvam esse caso com urgência e me tragam as respostas que o esclareçam. Saudações, Controlador! – despede-se, demonstrando que aquela interseção está encerrada.

***

Retirar João Almeida do hospital, não representou um problema para o tenente Rodrigo. Rápido o colocou numa cadeira de rodas, e antes que alguém surgisse pegou o elevador exclusivo para transporte de pacientes. Estava quase atravessando a porta de saída quando escuta alguém chamá-lo. Vira-se e se depara com um policial civil com quem trabalhou num caso antigo. Cumprimenta-o e se desculpando pela pressa prossegue em direção ao estacionamento.

A maior dificuldade que tem é colocar o homem dentro do seu Ecosport. Movendo o banco de passageiros para frente, consegue enfiá-lo no banco de trás.

Avalia que é melhor não procurar por ninguém, até as coisas se acalmarem ou que tenham algum esclarecimento. Acredita que é um risco levar João Almeida para sua residência em Vicente Pires, pois receia que se for para casa, os estranhos tenham condições de localizá-los, decide que irá para o sítio que possui próximo ao Grande Colorado.

A poucos quilômetros do destino, para no Posto Colorado para abastecer o carro. Assim que o frentista dá por encerrado o abastecimento resolve descer para fazer o pagamento com o cartão de crédito e acompanhar a operação, é quando observa o passarinho, que facilmente passaria por um pardal, pousado no teto do veículo. Provavelmente, por estar alerta, nota que os olhos da ave são brancos, de um branco leitoso e emitem pequenos pulsos de luz. Quando se aproxima mais do animalzinho, ele adeja. Literalmente decola, sem bater asas e foge do seu alcance. Rodrigo não tem dúvida: aquilo é coisa dos estranhos que tentaram sequestrar João Almeida.

Menos de dez minutos depois, chega ao sítio. Com a ajuda do caseiro retira João Almeida do carro, que dá os primeiros sinais que desperta. Já são quase nove horas da noite.

***

A arma que está em sua mão, se não fosse a ausência de gatilho, bem que poderia se dizer que era uma pistola. Entretanto, esta possui duas pequenas saliências, uma do lado esquerdo e outra, do direito, que quando pressionadas faz com que dispare, não tiros, mas ondas, que como já vira no hospital eram bastante contundentes, levando facilmente um homem a nocaute. Na parte de cima da arma um pequeno retângulo mostra faixas de luz esverdeada que depois de alguns disparos diminuem. Apesar de ser um especialista em armas, o tenente Rodrigo não consegue determinar de que material era fabricada aquela. Após alguns testes descobriu que arma se auto carregava, bastava que qualquer tipo de luz incidisse sobre ela.

Já não possuía dúvidas: estava lidando com alienígenas que provavelmente abduziram João Almeida, fazendo-o perder o juízo e acreditar que era um escravo fugido. Aqueles seres sem pelos, de cabeças enormes e mais altos de tamanho que qualquer homem que já vira, surgiram de outro planeta. A arma que tinha em mãos era a prova. Além do mais, eles eram muito diferentes das pessoas daqui.

O problema é que João Almeida insiste em afirmar que é um escravo fugido de um quilombo que foi destruído em 1746. Suas pesquisas na internet comprovaram que, realmente, existiu o quilombo de Ambrósio: Será possível que os alienígenas o houvessem mantido cativo todos esses anos? Pergunta-se. Outra coisa; era o estranho passarinho que não batia asas e os olhos emitiam pulsos de luz. Qual seria sua finalidade? Se fosse para localizá-los certamente já o teria feito. Ou aguardavam um momento melhor? Imaginava. O celular que toca interrompe seus devaneios:

Bom dia, coronel Ferreira!

Bom dia, tenente Rodrigo! Que diabos está acontecendo tenente? O que houve no hospital? – quer saber o coronel Ferreira que também é o secretário de segurança do Distrito Federal. – O coronel Mazinho que é diretor do hospital da PM ligou pra mim e disse que você retirou um paciente sem autorização. Segundo ele dois militares foram encontrados desacordados e quando voltaram a si, não conseguiram dizer o que aconteceu. Onde você está Rodrigo?

Coronel, primeiro é necessário que o senhor confie em mim, como sempre confiou. Vou lhe dizer algo que vai lhe parecer inverossímil. Mas preciso que me escute e acredite, por mais que o senhor possa rejeitar a ideia. A confusão no hospital foi causada por alienígenas… – assegura, enquanto aguarda que o coronel digira a informação.

Como tenente? Você me disse alienígenas? – indaga o Secretário com um quê de dúvida.

Sim coronel! – afirma Rodrigo – E posso provar!

Bem Rodrigo, se fosse outra pessoa me dizendo isso, eu não daria ouvidos. Porém, antes de tudo somos amigos, e eu nunca conheci ninguém tão incapaz de devaneios como você. Que provas você tem?

Coronel… Prefiro falar com o senhor pessoalmente.

Hoje eu tenho vários compromissos, mas vamos fazer o seguinte: amanhã à noite vá a minha casa depois das 9h. Ok?

Combinado! O mais tardar 21h30 eu estarei lá. Outra coisa coronel – lembra Rodrigo – eu não posso deixar o homem sozinho. Preciso que me dispense hoje e amanhã.

Pra todos os efeitos você está em uma missão pra mim. Bom dia tenente!

A curiosidade demonstrada pelo tenente sobre a origem do escravo, não foi menor que a demonstrada pelo próprio, sobre onde estava e tudo que o cercava. Apesar da ignorância natural relativa a uma terra futurista, que nada tinha a ver com aquela que deixou, quando Rodrigo, pacientemente e de forma didática, passa a lhe explicar o mundo em que agora se encontrava, João Almeida demonstrou uma compreensão inesperada, que traduzia por perguntas pertinentes.

Por todo o dia, como fizera na noite passada (que adentrou a madrugada), conversou longamente com o homem que acolheu em seu sítio. Primeiramente, fez com que lhe contasse sobre sua suposta vida de escravo. Quando lhe contou que tinha mulher e filho que viu serem capturados antes de fugir do quilombo, a expressão de sua dor foi tanta, que o comoveu. Além do que, a riqueza de detalhes com que descreveu acontecimentos, lugares e situações da época em que dizia ter vivido, praticamente o convenceu que João Almeida era realmente um escravo do passado que de alguma forma veio parar aqui. Talvez, ele conjecturou, os extraterrestres o tenham mantido em animação suspensa ou até mesmo retirado suas memórias. Isto justificaria o esquecimento do tempo que passou com eles.

João Almeida, apesar da confusão que fazia sobre determinados assuntos, aceitou bem sua nova condição. Medo possuía, entrementes, já havia vivido situações de sofrimento tão intenso, que a condição atual nem de longe apresentava. Além do mais, sentia que o tenente era uma pessoa que podia confiar. Parecia que toda a vida o conhecera. Quando ele disse que não havia mais escravidão, respondeu que aquilo era tudo que sonhou por toda vida.

***

Já passa das 21h30, quando o tenente Rodrigo chega ao belo sobrado de três pavimentos na QE 15 do Guará II, onde reside o coronel Ferreira. Naqueles três dias que conviveu com o escravo teve a certeza que a história contada por ele era real. Portanto, além de convencer o coronel sobre os alienígenas, tinha que persuadi-lo sobre a veracidade dos fatos relata- dos por João Almeida. Quando interfona é o próprio coronel que atende e avisa que abrirá o portão da casa

Boa noite tenente! Entre por favor.

Boa noite coronel! – responde estranhando a formalidade com que o coronel o cumprimenta, já que fora do trabalho são amigos pessoais.

Depois de se acomodarem no espaçoso sofá que adorna a casa, o coronel pergunta:

Por favor, tenente, explique o que aconteceu e porque não trouxe o homem. Eu quero conhecê-lo!

Rapidamente, Carlos Rodrigo relata todos os acontecimentos ocorridos nos últimos três dias, procurando não se esquecer de nenhum detalhe.

E onde o senhor deixou o homem? – Quer saber Ferreira.

Em lugar seguro! – prefere dizer, enquanto reforça a ideia que o coronel estranhamente se mantém protocolar. Afinal, sempre o tratou por você.

Cadê a prova que disse que tinha?

Abrindo a pasta que carrega, Rodrigo retira a arma que pegou dos supostos alienígenas e a entrega ao coronel, que se levantando a examina:

Obrigado por devolvê-la tenente! – agradece confirmando as suspeitas de Rodrigo, que se levanta e grita:

Quem é você? Cadê o coronel? – Enquanto, surpreso, vê as estranhas figuras que conheceu no hospital, materializarem-se diante dele.

Por favor, tenente, se mantenha calmo e nos ouça. Meu nome é Paulo Kauã, e somos do futuro, do século 26. Estamos em seu tempo com a missão de corrigir erros do nosso passado. Quan…

Espere! Como assim do futuro? Vocês são muito diferentes de nós! Parecem outra raça! Como podem ser humanos?

Tem razão tenente Rodrigo! A evolução que tivemos no nosso tempo, vocês levaram, comparativamente, milhões de anos para alcançar. Mas, já neste tempo, vocês desenvolveram a engenharia genética, e foi graças a ela que mudamos em vários aspectos. Traços estes, necessários para a vida no futuro. Principalmente, para as viagens interplanetárias e espaço-temporais. Mas me deixe continuar…

P.K., então, explica sobre os continnum de tempo. Fala sobre os erros cometidos pelos primeiros deslocadores no tempo, e do Conselho criado para corrigi-los. Enfatiza os fatos referentes a João Almeida e porque é necessário devolvê-lo ao século 18. Complementando continua:

— … Poderíamos usar outros recursos para retornamos com o cidadão João Almeida, porém, analisamos o senhor e sua vida, sabemos que é um homem capaz de entender os fatos que acabo de expor. Portanto, espero que nos ajude sem colocar empecilhos e, que guarde tudo que viu e escutou para si. É necessário que os acontecimentos no hospital não despertem a suspeita de seus contemporâneos que estamos aqui. Sei que é capaz de entender o motivo. Por favor, nos diga onde ele está.

Supondo que eu acredite em vocês, mesmo assim, têm algumas questões que necessitam de melhores esclarecimentos. Primeiro… Quero saber o que aconteceu ao coronel e a família dele. Quero saber, também, como esse homem pode ser igual ao coronel. Agora, não sei qual o senso moral de vocês, entretanto, não acho justo devolver um homem a uma escravidão indecente, torpe e cruel como a vivida no Brasil há alguns séculos (acreditando que toda essa loucura é verdadeira). Vocês, por acaso, viram as marcas nas costas de João Almeida? Sabem que o tratamento dado a esse homem e aos escravos em geral é pior do que o utilizado para animais? São capazes de imaginar ser visto como burro de carga e viver sob a chibata? – questiona Rodrigo demonstrando toda sua indignação.

Tenente Rodrigo! Quero que me ouça com muita atenção. – diz Pedro Henrique pela primeira vez se pronunciando.  — Muitas vezes, algum sacrifício tem que ser feito por um bem maior. Se não devolvermos esse cidadão a sua época, milhares ou milhões de outros poderão sofrer e até morrer em decorrência disso. Como P.K. já lhe explicou, mantermos o escravo aqui forçará o surgimento de um novo continnum, que poderá destruir qualquer realidade existente, instalando o caos no tempo e…

Como podem ter certeza? – interrompe Carlos Rodrigo.

Bem, antes de lhe responder quero dizer que suas perguntas terão respostas sinceras. O coronel e família estão bem. Estão em seus quartos dormindo, e não terão lembranças dessa noite. Quanto ao homem que o senhor vê à imagem do coronel Ferreira, não é humano. Nós o chamamos de Inorgânico e possui a capacidade de se transmutar. É um organismo criado no futuro sob a orientação do Cérebro Central de bóson-plasma. Todavia, tenente Rodrigo, existe algo mais importante para o senhor do que tudo que lhe foi dito até agora. – enfatiza Pedro Henrique enquanto seus pequeninos olhos procuram os de Rodrigo.

– Se esse homem não for devolvido ao seu tempo, o senhor não existirá, pois ele é seu ancestral direto, da linha do seu pai. Do pai do seu pai e assim, por conseguinte.

A expressão do tenente Carlos Rodrigo, após ouvir os esclarecimentos, não deixa dúvida sobre sua perplexidade.

***

O Prisma Louis Delord dedicou a maior parte dos seus cento e cinquenta e três anos, ao desenvolvimento das tecnologias consideradas primordiais para os deslocamentos no espaço-tempo. Ajudou a consolidar a técnica do contra fluxo magnético. Inventou os farejadores genéticos. Trabalhou no aperfeiçoamento dos cérebros de bóson-plasma. Foi a voz maior na criação da Rede Neural e seu maior defensor quando os discordantes do Conselho de Expansão e Sustentação das Tecnologias Avançadas, tentaram impedir sua criação. Em seu famoso vídeo ensinamento; “Caminhando pelo Espaço-Tempo”, discordou do termo “viagem no tempo” por não achar que se adequava a realidade, e o chamou de deslocamento no espaço–tempo. Exatamente, dentro de dois dias se aposentaria abandonando suas atividades junto ao Cérebro Central. Porém, o convite de Estefano Hawking, trazido por Marynadja – que lhe relatou os recentes acontecimentos –, lhe forçou o adiamento das férias compulsórias, o que muito lhe alegrou, pois aguardava por aquela solicitação, que vinha de encontro aos seus planos. Sabia que Estefano o queria pela sua experiência. Principalmente, por causa dos problemas sucedidos com os farejadores genéticos.

***

A Estação de Controle do Tempo do século 21 está localizada no lado oculto da lua, camuflada e incorporada ao cenário lunar. Oitocentos metros quadrados é a área que ocupa, sem tocar o solo, pela ação do contra fluxo magnético. A estação possui um arqueador espaço-temporal integrado a ela, bem como o tubo de avulsão utilizado para deslocamentos intraplanetas, ou, ainda, transferências extraplanetas de pequenas distâncias, como da Terra para Lua.

Não foi difícil para Louis Delord identificar o problema com os farejadores genéticos, que no século 21 possuíam a forma de pardal, justamente por ser uma ave abundante neste tempo. Afinal, foi ele que os desenvolveu. Os farejadores se perderam por algo muito simples, mas que não foi previsto nem por ele ou por alguém de sua equipe: uma leitura genética duplicada que os confundiu. Com efeito, ao comparar os genes do tenente Rodrigo com os do escravo João Almeida, ficou patente que o primeiro era descendente do segundo.

Aquele seu deslocamento ao século 21 foi providencial. Agora tinha certeza, que como dissera ao Conselheiro Mor do Conselho dos Estados Governantes do Brasil; precisava proteger e manter João Almeida em 2015, e para isto, faria o que fosse necessário. Naquele momento, as imagens da nano-tela da Estação mostravam que Paulo Kauã e Pedro Henrique, finalmente, já estavam com o escravo e seu descendente. Seu plano deu certo.

***

O tenente Rodrigo vivia um embate moral diante da decisão de deixar ou não, seu ancestral ser conduzido de volta ao passado. Todavia, entendia que nada poderia fazer. Os recursos dos seres do futuro lhes permitiriam, compulsoriamente, fazer o que quisessem. Então, comprometeu-se a ajudá-los visando tornar a situação menos traumática para João Almeida.

Apesar da insistência dos controladores, não permitiu ser espaço-transposto até o sítio. Durante o trajeto realizado em seu carro deixou a curiosidade falar mais alto, e se maravilhou com o mundo do futuro descrito pelos dois visitantes.

Antes de descer do carro solicitou a seus acompanhantes que esperassem fora da casa enquanto ele conversava com o escravo fugido, que agora sabia ser seu ancestral.

A explicação minuciosa oferecida por Rodrigo, apenas trouxe mais confusão à cabeça de João Almeida. Por mais que lhe dissesse que sua volta ao seu tempo era imprescindível. Por mais que lhe afirmasse que dessa vez iria para o Rio de Janeiro, deixando de ser escravo e com recursos suficientes para se manter no século 18 (conforme promessa dos controladores), a liberdade que a vida atual lhe oferecia lhe bastava e, fincou pé, recusando, terminantemente, qualquer outra perspectiva que não fosse a de permanecer no mundo atual. Rodrigo então tomou sua decisão: chamou os controladores do tempo e levando a mão à cintura, a altura da pistola que carregava, lhes disse:

Ele não vai com vocês!

A reação de Pedro Henrique foi instantânea; de um pequeno bastonete que carregava numa das mãos, se depreende um feixe de luz alaranjado que se expande e paralisa tanto o tenente quanto o escravo deslocado do passado:

Sinto muito, tenente Rodrigo! Mas ele vai conosco! – diz Pedro Henrique enquanto se aproxima de João Almeida.

Entretanto, naquele momento o Inorgânico, que ainda mantém a aparência do coronel Ferreira, acompanhado de outro personagem se materializa diante deles e, por surpresa de todos, usando a mesma arma que Rodrigo levou à casa do coronel Ferreira, atinge os controladores que impactados por violentas ondas estremecem violentamente e desabam desacordados.

Boa noite, tenente Rodrigo! Sei que mesmo paralisado pode me ouvir e entender. Meu nome é Louis Delord. Estes homens não mais lhe incomodarão. – afirma enquanto aponta para os desfalecidos P.K. e Pedro Henrique. – cuide bem do seu ancestral.

No momento seguinte, mesmo tomado pela paralisia dos seus membros, Carlos Rodrigo presencia, mais uma vez, os visitantes do futuro desaparecerem.

***

As emanações endorfinas derivadas da planta Fejá, originária da lua Enceladus de Saturno, produziu seus efeitos e Estefano havia dormido profundamente. Acordou com a mesma sensação de alguns anos, antes de receber a notícia que sua irmã Janice falecera vítima de uma emboscada arquitetada por revolucionários no planeta Kleperon. Porém, era um cético e não acreditava em sentimentos premonitórios.

Antes mesmo que realizasse a higiene pessoal, o braço da Rede Neural instalado em sua residência (cada braço era uma pequena esfera que flutuava livremente integrada a um femto-chip), lhe avisou que Conselheiro-Mor do Conselho dos Estados Governantes do Brasil; o convocava para uma reunião às 9h.

Nova Brasília não manteve a nomenclatura de palácio para a sede do Governo do país. Todavia, a sede do Conselho de Governantes Brasileiros era conhecida como Casa do Planalto, alusão ao antigo nome que abrigou os presidentes brasileiros.

Após ter a identificação genética confirmada, Estefano tem sua entrada liberada, conduzido a sala espelhada do piso ao teto por quartzo jupteriano, onde a reunião se daria. Ao entrar, não consegue esconder a surpresa; seus subordinados diretos: Marcos Vinícius, sua secretária Estela, Marynadja e dois assistentes dela estavam presentes, sem que ninguém lhe comunicasse a convocação deles. Só não viu o jovem PEG-h Jorge Matheus. Aquilo era uma quebra de hierarquia e ele exigiria uma explicação. Cumprimentou a todos, enquanto o secretário do Conselheiro Mor lhes participava que o próprio Conselheiro estaria presente dentro de instantes.

Entrementes, as surpresas não haviam terminado para o Prisma Estefano. Quando Floriano Osório, o Conselheiro Mor, adentra o recinto tem por companhia Louis Delord, que Hawking acreditava estar no século 21, cuidando da missão que lhe deu.

Saudações Prisma Estefano!

Saudações senhores! Suponho que vocês estejam surpresos por esta convocação, e também pela presença do Prisma Louis Delord. – pronuncia-se o Conselheiro Floriano – Mas… Serei breve! A missão de vocês no século 21 foi abortada. Delord vai lhes dar as explicações necessárias.

Saudações senhores! Como vocês sabem, há anos trabalho com o Cérebro Central de bóson-plasma, que integrado a Rede Neural zela pelo bem-estar dos nossos cidadãos. – começa Louis Delord – O acontecimento do escravo do século 18 ser deslocado para o século 21 teve sua necessidade descoberta pelo Cérebro Central e por ele foi planejada a ação, com minha participação e conhecimento do Conselheiro Mor, – enquanto Hawking e outros se entreolham, Delord continua – justamente visando proteger o cidadão do nosso tempo, e…

Como assim; “proteger o cidadão do nosso tempo” se essa situação pode criar um terceiro continnum com consequências impensáveis? – interrompe Estefano – Vocês por acaso perderam o juízo?

Fazendo questão de olhar um por um, Louis

Delord responde:

Esta é a questão… Estimado Prisma. Na realidade o continnum que vivemos é o terceiro, e ele só existe porque o cidadão do século 18 foi parar no século 21. O Cérebro só fez o que era necessário para mantermos nossa linha temporal intacta, assegurando nossa existência e a dele.

Marcos Vinícius, Estela, Marynadja, os dois assistentes e Estefano, olham-se reciprocamente deixando transparecer surpresa e dúvida.

Não é possível! – exclama Mary. – Tenho certeza que estamos no primeiro continnum!

Não doutora! A senhora apenas acredita que este é o primeiro, por viver nele e sua consciência ter sido toda condicionada em torno dele. Na realidade, com a permanência de João Almeida no século 21, acabamos com o continnum original e agora só existe a nossa realidade. Todas as questões foram referendadas pelo Cérebro Central.

Espere um pouco. Se o que você diz é verdade, que nosso continnum não é original, nós podemos ser responsáveis pela morte dos milhões de brasileiros ocorrida na guerra civil do século 23, como também, pela destruição da antiga Brasília. – espanta-se Marcos Vinícius!

Provavelmente o somos! Contudo, o importante é assegurarmos a manutenção desta linha temporal e nossa existência. Ou vocês estão preparados para nunca terem existido? – inquire o Conselheiro Mor.

Estefano Hawking escutou os últimos diálogos sem acreditar que o Conselheiro e Louis Delord não se dessem conta da barbaridade que articularam. E o pior; parecia que a iniciativa partiu do Cérebro Central que queria preservar a própria existência. Pelo menos era o que tinha dado a entender as palavras de Delord. Confirmadas suas palavras, o que muitos temiam começou: a inteligência artificial começava a ter livre arbítrio. Precisava lhes mostrar o perigo:

Prisma Delord, Conselheiro Floriano, quero que entendam que esta situação não é moralmente aceitável. Como disse o doutor Marcos Vinícius, a responsabilidade por milhões de mortes e a destruição de uma cidade pode estar sobre nossos ombros. Devemos insistir para que a realidade original seja preservada. Foi para isso que a CCT foi criada. Provavelmente, em outra realidade, não nos lembraremos desses acontecimentos. Entretanto, de alguma forma, saberemos que fizemos o certo. Outra coisa: o Cérebro Central deveria somente ter mostrado suas conclusões, e estas, levadas ao Conselho de Governantes Brasileiros para que fossem referendadas ou não. Vocês estão se colocando acima da Lei, e aceitando como definitiva as conclusões do Cérebro. – procura mostrar Estefano.

Todos vocês concordam com Hawking?

– questiona o Conselheiro se dirigindo aos outros quatro que compõem a mesa, recebendo de volta a resposta afirmativa – Pois todos, a partir deste momento, são considerados traidores e estão presos. Ainda hoje serão deportados para Ganymede (uma das luas de Júpiter). Não podemos correr o risco que venham a interferir no que já está feito, e a ameaçar toda existência atual.

***

A convocação para o conclave na Casa do Planalto não foi comunicada a Jorge Matheus, uma vez que ele era apenas um jovem assistente recém-chegado. Na noite anterior à reunião, lembrou-se de um antigo vídeo, que de geração em geração, era passado de pai para filho, seguindo um pedido de um ancestral da família que teria vivido no século 21. Fazia quatro anos que seu pai, Diogo Almeida, lhe entregara uma cópia num chip de holograma, que originalmente foi filmado num formato antigo conhecido como MP4, e gravado em DVD, uma mídia muito comum no início daquele século. Os últimos acontecimentos lhe despertaram a lembrança daquelas imagens, quando pela primeira vez as viu, pouca importância lhes deu, mas, agora, alguma coisa fazia com que ligasse uma coisa à outra.

Quando mais uma vez, assistiu à filmagem, decidiu levá-la imediatamente ao conhecimento da diretora Marynadja, entretanto, como era noite avançada, deixou para o dia seguinte.

***

A notícia bombástica era transmitida por todos os braços da Rede Neural: O presidente da CCT, a diretora do Centro de Vigília do Tempo e outros membros, foram presos sob a acusação de traidores. Era meio-dia e quarenta e três minutos e Jorge Matheus compreendeu porque Marynadja não compareceu ao trabalho. A história da traição divulgada não tinha fundamento. Apesar do pouco tempo como assistente, já os conhecia há muito, por acompanhar de perto o trabalho deles. Quando foi aceito no Centro, sentiu-se realizado.

As imagens em Real-3D mostravam agora, o Conselheiro Mor acompanhado pelo Prisma Louis Delord, confirmando a história que o Prisma Estefano Hawking, os doutores Marcos Vinícius e Marynadja eram os artífices de um plano de deslocamento no espaço-tempo, visando assumir o controle do Conselho de Governantes Terráqueos. As investigações ainda estavam em curso, e esperava-se descobrir a real intenção dos traidores, que já eram deportados para Ganymede, visando manter a ordem. Acreditava-se em mais elementos envolvidos e, portanto, as investigações estavam em curso. Quaisquer novidades seriam divulgadas na Rede Neural.

A presença de Louis Delord compartilhada com a do Conselheiro Mor naquelas informações, e o antigo vídeo de seu ancestral, foi a confirmação para Jorge Matheus de que aquela história não tinha base. Precisava descobrir o que realmente aconteceu e se perguntava, quando a ideia surgiu: se Louis Delord se deslocou até o século 21, teve que implantar nele um pico-chip para que sua localização não se perdesse no espaço-tempo, e suas imagens pudessem ser transmitidas em Real-P. Então, ali mesmo do Centro de Vigília ele poderia solicitar ao cérebro de bóson-plasma “Lena” que acessasse as últimas imagens do passado vivido por Delord. Só haveria um problema; Delord perceberia o acesso ao seu pico-chip, mas ele tinha que arriscar.

***

Quando os Inorgânicos enviados pelo Prisma Louis Delord chegaram ao Centro de Vigília, havia apenas dois minutos que Jorge Matheus partira num tubo de avulsão e estava prestes a chegar ao lado oculto da lua, mais precisamente na antiga Estação de Controle do Tempo do século 21. Levava consigo a esperança que o velho arqueador espaço-temporal tivesse condição operacional.

***

Rodrigo se orgulhava da felicidade estampada na face do homem que um dia foi escravo, e por linhas inacreditáveis conquistou a liberdade. Seu filho de dez anos ganhou um avô, e João Almeida ganhou uma família. O vovô não sabia jogar bola, mas abria um largo sorriso quando o neto comemorava os dribles que lhe dava.

O tenente tinha a firme intenção de traçar sua árvore genealógica em busca de saber o que aconteceu com a mulher e o filho do seu ancestral.

Há alguns dias, gravou um DVD relatando os fatos ocorridos desde o aparecimento de João Almeida, em que ele próprio conta a versão de sua história. No vídeo, descreve os seres futuristas e tudo que foi dito por eles. Enfatiza a intervenção brusca de Louis Delord, e o ataque que ele investe contra Paulo Kauã e Pedro Henrique. Termina solicitando aos seus descendentes que repassem as imagens aos seus filhos, e que os conseguintes também o façam, pelo menos até 2517, o ano do qual os estranhos viajantes disseram ter vindo. Uma pergunta, talvez, ele se faça pelo resto da vida: terá aquele vídeo alguma utilidade? A resposta somente poderá ser dada por Jorge Matheus de Almeida, um PEG-h do século 26.

Livros de Gil DePaula -- www.clubedeautores.com.br -- www.editoraviseu.com.br -- [email protected]

Livros de Gil DePaula -- www.clubedeautores.com.br -- www.editoraviseu.com.br -- [email protected]

THP-1024x386-1 O Escravo - Uma História do Livro O Baú das Histórias Inusitadas

BHIF4 O Escravo - Uma História do Livro O Baú das Histórias Inusitadas

 

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios *

*

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: